terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Perplexidades


Ferreira Gullar




a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo

e todo o existir consiste nisto

é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio do meu cabelo

e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A dor de sofrer



Airton Mendes (/11/2011)



A dor do sofrimento
- Onde dói?
No coração?
No peito?
No que não foi?
No que está feito?
No amor não esquecido?
No dinheiro perdido?
- Onde dói a dor
Do sofrimento sofrido?

- O que é a dor?
É a pessoa que partiu?
É a tua casa que ruiu?
É perder o companheiro querido?
É lavar um membro ferido?
É não ter ninguém a teu lado?
É sentir um osso quebrado?
É a paixão que não tem cura?
É a ferida que não supura?

Onde dói a dor do amor?
E, pior (se assim for)
Onde dói a dor
De quem não sente o amor?


quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O sol da cidade



Airton Mendes
07/2011

A cidade está desperta
E, rosto sob a coberta
Aproveitas o último segundo
Do sonho que será esquecido
No instante advindo

É quando terás que enfrentar
O sol a iluminar
O teu rosto rugado
O teu corpo cansado
Os teus pés disfarçados

Disfarce de bailarina
Que o sol, impassível, ilumina
Deixando porém entrever
Para poucos olhos
O retrato do vilão sob a menina

Edifício São Vito





Airton Mendes
09/2011


Finalmente demoliram o velho edifício
Depois de meio século
O estorvo de 27 andares foi ao chão
Liberaram um pedaço de céu
Um facho de sol
Um ponto de vista
Muitos pontos de fuga
Enterraram o feio prédio
E espalharam sua gente feia
A poeira subiu
E com ela as histórias
A poeira dissipou-se
As histórias ainda estão no ar
Talvez até a próxima construção
Talvez para sempre

cidade natural

Airton Mendes
(07/2011)


Está lá, não há como negar
Está lá e é você
Você, rotulado, numerado,
arquivado, identificado...

Você, o numero 13.110.307
Também conhecido como
Airton Gonçalves Mendes
Natural de Santo André

Naturalmente vieste ao mundo nesta cidade
Naturalmente fazes parte dela
Juntamente com tudo
Que a cidade naturalmente tem

É natural da cidade
O barulho, o medo, o odor e o terror
O mendigo, a favela, o dever e o poder
Sua mãe, seu pai, seu tio e o rio

O rio que nascia na rua ao lado
Hoje está entubado,
Sem respirar, sob o asfalto
Da natural avenida

E tudo é natural nesta cidade
Como a morte
Naturalmente morreram seu pai e seu tio
Naturalmente morrerá você
Como naturalmente morreu o rio

Naturalmente também morrerá esta cidade
Um dia...






segunda-feira, 25 de julho de 2011

Lembranças

Airton Mendes (07/2011)

Na cidade
-rotina de olhos baixos
Num poste distraído
encontras comigo

Na cômica cena
Permuto a vergonha
pela beleza natural
do teu riso incontido

De tão bela
assim sorrindo
esqueci o arranhão
a dor, o poste inimigo

Lembro-me do sorriso
e da tua voz
Lembro-me do quarto de hotel
e da noite quente

Mas não me lembro dos teus olhos

Cidade fantasma

Airton Mendes (07/2011)

Da infância, lembro-me de Santa cruz
e do seu lamacento Rio Pardo

Das suas águas frias
Do medo de pular da ponte
Das frutas na porta da vendinha
Do cinema sempre fechado

Na praça, imponente,
o Clube dos Vinte
determinava quem e quantos
ali mandavam

Ainda guardo a velha fotografia
Os irmãos abraçados
a igreja envidraçada
o sorriso clicado

Existiam as garotas, tantas e lindas
(e menino de cidade grande lá fazia sucesso)

Existia o sorvete
Existia o sítio
Existia o cavalo
Existia a funerária

E existia Maria
minha querida avó
minha avó cigana
minha “vó” Maria

Da casinha aconchegante
Das comidas deliciosas
Do sorriso
Do carinho

Maria, nossa cúmplice
escondia nossas artes
Competia com mamãe
Quem era mais mãe?

Nem avó nem mãe
Maria era a cidade
Santa cruz morreu com ela...

cidadão

Airton Mendes (02/2011)

O mundo é do tamanho
Da minha retina

Os sabores são aqueles
Que minha boca provou

As notícias são as que leio
Com os olhos da televisão

Faço o que é permitido
E o que é devido

O mundo é bom
Deus é bom

Mas pago meu dízimo
Ao Diabo